A POLÊMICA DAS CÉLULAS – TRONCO
Não é de hoje que ciência e religião se digladiam pelo controle sobre o comportamento e os valores do homem. Não raro na história a moral sepultou inovações e descobertas científicas; não raro a ciência deflorou a vida e os direitos humanos.
A descoberta das possibilidades de uso de células-tronco embrionárias, salto revolucionário para pesquisadores de todo o mundo, poderia ser uma coroa de louros. Mas, ao menos no Brasil, transformou-se em indigesta coroa de espinhos.
Nossa Coordenadora de Biologia abre o laboratório para dissecar a controvérsia que está dividindo opiniões no Brasil: quais as vantagens da pesquisa com células de embriões?
Se você se debruçar sobre a questão com o olhar criterioso e investigativo dos que vasculham o inexplicado, recairá em uma discussão quase tão antiga quanto a própria humanidade: quais os riscos, os limites do avanço tecnocientífico? E quais os perigos do ostracismo, da manutenção de princípios conservadores?
Março de 2028. Na emergência de um grande hospital, a família Smith recebe a má notícia: está confirmado que a queda de seu filho de 7 anos resultou na secção da medula espinhal e na paralisia de suas pernas. A perda de movimento seria inevitável, mas o hospital infantil da cidade oferece a terapia com células-tronco, que permitirá ao menino recuperar-se da lesão e levar uma vida praticamente normal.
Março de 2028. Na emergência do hospital Souza Aguiar, a família Silva recebe o mesmo diagnóstico para seu filho. Porém, como “os Silva” são brasileiros, não existe possibilidade de tratamento no país. A única chance é viajar para o exterior. Será que o destino dessa “família Silva do futuro” poderia ser diferente?
Em 2005 o Congresso brasileiro aprovou a “Lei de Biossegurança” – que, entre outros aspectos, autoriza o uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa. Mas, naquele mesmo ano, a Procuradoria Geral da República entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra a lei.
Desde então, os estudos com células-tronco embrionárias estão suspensos no Brasil e o tema está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal. A proibição das pesquisas foi baseada no argumento de que dois princípios constitucionais são violados nessa circunstância: o direito à vida e à dignidade dos embriões. Mas, já serão estes embriões seres vivos?
É preciso esclarecer que os embriões que seriam usados para pesquisa no Brasil não são, em hipótese alguma, gerados em uma mulher e nem produzidos com esse propósito. São todos embriões com três a cinco dias de vida, congelados há mais de três anos em clínicas de fertilização.
Eles foram gerados por fertilização in vitro, ou seja, fora do corpo da mulher, em um tubo de ensaio, e não podem mais ser usados para reprodução. São embriões que só se formaram com a intervenção humana e que só conseguiriam se desenvolver plenamente, caso fossem implantados em uma mulher.
O prazo máximo de congelamento de um embrião para esse fim é de três anos. Após esse período, os embriões não são mais viáveis para gerar crianças e ficarão congelados até serem descartados. São células que nunca estiveram em um útero, nem nunca estarão.
E mais, o seu uso em pesquisa só ocorre com pleno consentimento do casal que os gerou. Não se deve, portanto, confundir utilização de células-tronco em estudos científicos com aborto.
Sem dúvida, muitas pessoas argumentam que tal pesquisa é desnecessária porque também podem ser obtidas células-tronco a partir de adultos ou do sangue do cordão umbilical.
De fato, os cientistas podem trabalhar com dois tipos de células-tronco: as embrionárias e as adultas. As primeiras, que só ocorrem no início do desenvolvimento embrionário, são denominadas totipotentes, pois podem se transformar em qualquer tipo de célula.
Com elas se consegue formar de hemácias a células nervosas – essas fundamentais para o possível tratamento de doenças como Alzheimer ou lesões de medula espinhal. Já as células-tronco adultas (e aí se incluem as retiradas do cordão umbilical) só formam alguns tecidos, como músculo, osso ou cartilagem.
São várias as vantagens do uso das células embrionárias sobre as adultas. Pode-se destacar, além da sua totipotência, a facilidade de seu isolamento – já que constituem a totalidade do embrião – e o maior controle na indução de sua especialização.
Além disso, a grande perspectiva é que, com o aprofundamento dos estudos nessa área, possamos compreender todos os mecanismos que regem a especialização de uma célula-tronco e, no futuro, aplicá-lo em células adultas, dispensando o uso de embriões.
Independente da discussão jurídico-moral, são incontáveis os exemplos de aplicação prática, potencial ou já realizável, desse tipo de célula: a reconstrução de tecidos perdidos por mutilações e acidentes; a regeneração de massa óssea em pessoas portadoras de osteoporose; reposição de tecido necrosado cardíaco após infartos; tratamento de Mal de Parkinson, Alzheimer e lesões neurológicas traumáticas e advindas de derrames; cura para diabetes, hemofilia e leucemia; recuperação de tecido renal em pacientes com necessidade de transplante de rim; produção de tecido hepático para doentes com cirrose ou hepatite…
Entretanto, o desenvolvimento de todas essas perspectivas está seriamente ameaçado no nosso país devido ao atraso com as pesquisas de células-tronco embrionárias. Será que teremos, no futuro, que pagar royalties enormes para importar uma tecnologia que podia ter sido desenvolvida por nós?
E as famílias, que por não possuírem recursos para viabilizar tratamentos no exterior, terão que assistir, impotentes, ao avanço de doenças em seus entes queridos? O Brasil dispõe do principal para o desenvolvimento de qualquer tecnologia nova: cientistas especializados e capacitados.
É claro que falta muito para que tenhamos vários centros de excelência em pesquisa, porém carecemos especialmente de alocação de recursos e uma legislação adequada. Essa última é mais fácil de resolver. Basta que elejamos bons legisladores – e, sobretudo, se ofereça a eles informação.
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