VIDA DE ASTRÔNOMO
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No final do ano passado circulou no meio acadêmico internacional um
trabalho dos astrônomos Augusto Damineli Neto, Claus Leitherer e Werner
Schmutz sobre transformações que estão acontecendo na estrela AG
Carina.
Essa parceria é um perfeito exemplo das maravilhas que a
moderna tecnologia permite no trabalho científico: Damineli, Leitherer
e Schmutz não se encontraram pessoalmente (na verdade, eles mal se
conhecem). Toda a comunicação entre eles aconteceu via Bitnet, uma rede
que permite aos computadores dos institutos de pesquisa conversar
livremente.
Graças a essa rede, Leitherer propôs e coordenou o trabalho
a partir do Space Telescope Science Institute, em Baltimore, Estados
Unidos; no Brasil, Damineli comparou a AG Carina com outros astros.
Para isso, ele escolheu os pontos do céu a observar e determinou a
regularidade das observações.
A seu favor está o fato de essa estrela
fazer parte de uma constelação austral, ou seja, agrupamento de
estrelas que pode ser visto somente a partir do hemisfério sul. Schmutz
fez todos os cálculos do trabalho no Institut für Astronomie de
Zurique, Suíça.
Enquanto durou a pesquisa, Damineli chegava ao seu local de
trabalho, o Instituto Astronômico e Geofísico (IAG) da Universidade de
São Paulo, às 8 horas, e já encontrava uma mensagem na tela de seu
computador transmitida de Zurique por Schmutz, que naquele momento
estava almoçando. Leitherer, por sua vez, ainda dormia em Baltimore. E
pensar que tudo isso aconteceu com o filho de um lavrador do interior
do Paraná, de 45 anos, que só aos 16 viu pela primeira vez um aparelho
de televisão.
A trajetória do menino Augusto, de uma casa de chão
batido às margens do Rio Água do Jacutinga, perto de Ibiporã, até a
moderna Astronomia, parece surpreendente. Eu tinha horror a qualquer
tipo de sapato, andava descalço mesmo durante as noites, mal iluminadas
por lamparinas, pois não tínhamos eletricidade. A escuridão
proporcionava a fantástica visão do céu abarrotado de estrelas, mas eu
não posso afirmar que tenha havido uma ligação entre esse fato e a
escolha da minha profissão, confessa.
É claro que todos os objetos dessa profissão estão no céu, mas o que
menos um astrônomo dos nossos dias faz é olhar para eles. Para mim,
olhar pelo telescópio é tão obsceno quanto olhar pelo buraco da
fechadura, compara Damineli.
Por isso, nos 2 alqueires e meio de terras
cheias de árvores que possui na Ilha do Cardoso, um protegido recanto
da Mata Atlântica no litoral norte paulista, não há telescópio, luneta
ou mesmo binóculo, embora o céu pareça tão estrelado quanto aquele da
infância nas margens do Água do Jacutinga.
A mais moderna tecnologia
ali instalada está no forno, onde o astrônomo prepara os peixes que ele
mesmo pesca, sempre elogiadíssimos, segundo sua insuspeita versão de
cientista. A verdadeira jornada de trabalho de um astrônomo desse
porte, em todo o caso, é menos poética, ainda que guardando boa dose de
contato com os astros.
Damineli resume sua atividade como sendo não apenas a necessidade de
conhecer os corpos celestes, mas também a tentativa de penetrar na
dinâmica de uma galáxia, sentir a pulsação das estrelas, e retirar dali
alguma coisa de fundamental, superior aos cálculos, que logo são
superados.
Cálculos é a palavra-chave dessa definição. Quando faz o
pedido para utilizar um telescópio geralmente com mais de seis meses de
antecedência , o astrônomo deve apresentar rigorosas justificativas
para sua pretensão. Três meses antes de começar a observação
propriamente dita (apenas 10% do nosso trabalho, segundo Damineli),
todos os rigorosos cálculos que orientarão a operação do telescópio,
segundo a segundo, devem estar definidos, de modo que a captação das
imagens demore o mínimo possível. Para conseguir isso, é preciso passar
meses à frente do computador, fazendo e refazendo cálculos outros 60%
da carga de trabalho. Os demais 30% são passados nas salas de aulas.
O domínio da Física dos gases, da dinâmica dos corpos rígidos, da
Física de partículas, do eletromagnetismo e da Matemática são
conhecimentos indispensáveis na vida profissional do astrônomo. Com uma
ressalva fundamental: não basta ter aprendido essas matérias na escola,
é preciso ter sido muito bom aluno.
Damineli foi o melhor aluno da
classe durante toda a vida escolar com exceção da faculdade, onde não
existia esse tipo de comparação , tendo logo de saída realizado a
proeza de saltar da segunda para a quarta série do curso primário, por
decisão do conselho de professores da escola onde estudava.
Por causa
dessa sua boa cabeça (e sobretudo dessa sua obsessiva vontade de
aprender, de saber as coisas) foi convencido a entrar no seminário e
preparar-se para ser padre. A suposta vocação resistiu até os 18 anos,
quando conheceu, numa reunião secreta, as teorias de Charles Darwin
sobre a evolução das espécies, que contradiziam a Bíblia.
Quando
percebi que os padres escondiam dos seminaristas parte do conhecimento
humano, houve um rompimento intelectual que se associou às minhas
dúvidas de caráter físico, à sexualidade reprimida, lembra Damineli.
Juntei a cabeça com o corpo e vi que não dava mais para ficar ali.
Se não olha pelo buraco da fechadura, como o astrônomo moderno entra
em contato com os objetos que pretende estudar? Atualmente, as imagens
captadas pelo telescópio passam por um receptor ótico e são
transmitidas para o computador, instalado numa sa-la ao lado, no
observatório. Geralmente, o trabalho é feito em equipe, sob orientação
do astrônomo.
É ele quem define o ponto do Universo a ser pesquisado e o que
exatamente procurar ali. Para o computador, há uma quantidade
fantástica de infor-mações nas imagens trazidas pelo te-lescópio, mas
está programado para reter apenas as que dizem respeito ao estudo
previamente definido o resto vai literalmente para o lixo. Tu-do se
processa a uma velocidade enorme e a regra é não interferir fisicamente
na observação, para que ela não se atrase.
Quanto menos operações humanas houver, menos perigo de erros fatais.
Por exemplo, uma pesquisa para definir a estrutura das galáxias exige a
observação de alguns milhões desses corpos. O computador é capaz de
extrair todas as informações da observação feita, identificar e
classificar cada galáxia observada, definir seu tipo, sua distribuição
pelo espaço.
Aí começa o trabalho do astrônomo, com as informações
catalogadas e arrumadas, para chegar às conclusões. Por isso, na
Astronomia moderna, o risco de alguém sair procurando alguma coisa e
tropeçar, por acaso, com outra muito diferente, é insignificante,
embora não de todo impossível.
No Brasil, atualmente, apenas o telescópio instalado no município de
Brasópolis, Minas Gerais, do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), oferece boas condições de trabalho. Na
verdade, até bem pouco tempo éramos os lanterninhas da América Latina
no campo astronômico: basta ver que o observatório argentino de La
Plata tem 110 anos, enquanto o de Brasópolis tem apenas treze. Ainda
assim, nossa Astronomia experimentou um surpreendente boom nos anos 70,
e desde então passou a atrair estudantes e pesquisadores dos países
vizinhos, sobretudo para o IAG da USP.
Supõe-se que o quadro vai
melhorar ainda mais, no começo do próximo século, quando deverá ser
instalado no Rio Grande do Sul o LSRT (Large Southern Radio Telescope),
um radiotelescópio equipado com uma antena parabólica que mede entre
300 e 500 metros de diâmetro, de custo estimado em 100 milhões de
dólares.
Financiado por uma espécie de cooperativa formada por diversos
países, esse equipamento terá a mais avan-çada tecnologia entre seus
similares na Terra.
O LSRT permitirá que os astrônomos façam uma
verdadeira devassa no céu, onde deverão ser descobertos aproximadamente
90 000 pulsares estrelas que emitem im-pulsos de rádio. Ele também
poderá medir a distância de toda a população de galáxias do Universo.
Não é só pelas gigantescas dimensões desse equipamento que o
mapeamento mais preciso das distâncias cósmicas se tornará possível.
Sua localização geográfica foi estrategicamente escolhida para que os
cientistas possam ter o melhor acesso ao centro galáctico e às duas
Nuvens de Magalhães. Além do LSRT, dois novos telescópios, um no Chile
e outro no Havaí, deverão entrar em operação já no ano 2000. Pelo menos
esse é o objetivo do Projeto Gemini.
Robotizados e com dimensões muito
maiores do que os telescópios hoje existentes, os Gemini permitirão aos
astrônomos descobrir, finalmente, se o Universo é finito ou infinito, o
que terá impli-ca-ções científicas e culturais extrema-mente
importantes.
A Astronomia do futuro, então, revela-se uma atividade muito
promissora também no Brasil, e é com esse pensamento que os
profissionais desta área, principalmente os filhos do boom dos anos 70,
tentam arrecadar novos discípulos. Precisamos preparar cabeças que
tenham imaginação suficientemente ampla para dar con-ta de instrumentos
tão poderosos.
Nessa garimpagem de novos talentos, o astrônomo do IAG
conta com um poderoso aliado, que influencia as novas gerações, embora
seja visto pelos educadores de forma negativa: os vi-deogames. Os
melhores astrônomos do futuro serão aqueles que souberem usar bem os
programas de computa-dor, integrados em pacotes, que têm dinâmica
parecida com a dos jogos eletrônicos, informa Damineli.
O contato do
astrofísico com o processamento de imagens é cada vez maior e a
habilidade exigida para que ele manuseie essas imagens não é muito
superior à necessária para um garoto prever jogadas num desafio de
videogame.
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