Marx explica?
Enterrado sob os escombros do muro de Berlim há
quase duas décadas, Karl Marx, o grão-mestre do comunismo, voltou do
mundo dos mortos para assombrar livrarias. Ao menos na Alemanha, onde a
crise financeira resultou numa explosão das vendas de O Capital, o
tratado em seis volumes publicado em 1867 no qual o filósofo alemão
esmiuça e critica o modo de produção capitalista.
Apenas em outubro, segundo a principal editora de Marx no país,
cerca de 500 exemplares foram vendidos, número que costuma levar um ano
inteiro para sair das prateleiras. No cômputo geral de 2008, as vendas
triplicaram em relação a anos anteriores, graças a consumidores atrás
de explicações para o tsunami econômico.
O que leva a uma questão: com a maior crise desde a Grande Depressão,
idéias marxistas há pouco tempo dissolvidas no ar se tornam
repentinamente sólidas?
Nas universidades, economistas, historiadores e cientistas sociais
avaliam o “ressurgimento” do criador do materialismo histórico como
algo previsível em meio à incerteza econômica.
”Marx foi quem mais ajudou a desmistificar o capitalismo e o mercado
auto-regulado que beneficiaria a todos. Nessas horas, é natural que se
queira lembrar o que ele disse“, acredita o doutor em filosofia José
Crisóstomo de Souza, da Universidade Federal da Bahia [Ufba]. O autor
de A Ideologia Alemã, diz o professor, continua tão atual quanto outros
grandes teóricos da sociedade.
Em sua obra mais célebre, Marx escreveu que o capitalismo sofreria de
crises cíclicas. Após um período de crescimento econômico como poucos
na história, acompanhado de ganhos estratosféricos que muitos julgaram
eternos, este é um dado que parece avalizar seus textos em nome de
respostas para a turbulência que engoliu bancos sobreviventes do crack
de 1929.
Recorrer a O Capital e outros livros de Marx, no entanto, não é o
melhor caminho para entender os tropeços do sistema financeiro, diz o
professor de economia política internacional Paulo Roberto de Almeida,
do Centro Universitário de Brasília [Uniceub].
”As crises do capitalismo de que Marx tratou eram, tipicamente, crises
de superprodução. De um lado, acumulação de produtos em quantidades
crescentes, em face da miséria também crescente da classe trabalhadora,
que não teria como absorver essa produção“, explica. ”É uma análise
muito precária. Marx também tratou da moeda e do dinheiro, mas suas
teses, típicas de um cidadão educado na escola do lastro-ouro, seriam
risíveis na perspectiva das atuais crises financeiras e bancárias“.
Como trunfo, Almeida lembra que Marx acreditava numa crise de grandes
proporções que produziria a derrocada final do capitalismo. ”Foi onde
ele se enganou. Sistemas dinâmicos produzem crises. Sistemas estáticos,
como o socialismo, produzem estagnação“.
GLOBALIZAÇÃO – Mas a derrocada de Marx tem
adversários de peso. Marxista de carteirinha, o historiador britânico
Eric Hobsbawn afirmou em uma entrevista publicada pela agência de
esquerda Carta Maior que o interesse por Marx se deve ao fato de ele
ter previsto, ao analisar a ”sociedade burguesa“, a natureza da
economia no século 21.
Dizer isso de outro modo é reconhecer em sua obra uma visão da
globalização, com a defesa da abertura de novos espaços e territórios
ao capital internacional.
Mas Marx foi além, diz o professor Jorge Nóvoa, do Departamento de
Ciências Sociais da Ufba. ”Ele também tratou do capitalismo financeiro,
dando uma perspectiva das transferências de capitais em nível global
tão comuns hoje em dia“.
Uma voz a ser necessariamente ouvida neste debate talvez seja a do
economista americano Paul Krugman, mais recente vencedor do Nobel de
Economia.
A crise, ele acredita, não obriga nenhuma conversão a Marx, mas a
Keynes, o teórico inglês que inspirou o New Deal, cujas políticas
recuperaram a economia dos EUA na década de 1930. Ao menos dessa vez,
que a história não se repita como tragédia.
Capitalismo e riqueza, até a raiz
Marx é mundialmente conhecido por ser um autor radical: em sua obra,
pretendeu ir até as raízes de seu objeto de estudo, o sistema
capitalista. Suas teorias procuram apontar como e de onde surge o
capital, cuja origem estaria sempre na exploração da força de trabalho
convertida em riqueza.
Para o historiador Jorge Nóvoa, da Universidade Federal da Bahia, a
explicação de Marx para o funcionamento da economia regida pelo capital
é a chave para entender porque o filósofo alemão continua atual e apto
a dar respostas para a atual crise financeira mundial.
“Marx estudou o capitalismo inglês da sua época, de modo que ele não
poderia prever a natureza de uma crise como esta. Mas, estruturalmente,
a lógica do sistema permanece a mesma, o que tem sido ignorado por
certos analistas”, diz.
Nóvoa refere-se precisamente à produção da riqueza e à origem atual dos
lucros. “Não é possível criar dinheiro a partir de dinheiro. Esta crise
prova que isso continua sendo uma ilusão, já que ao capital precisa
corresponder a uma base produtiva sólida, seja industrial ou agrícola.
Ou então o sistema entra em colapso, como hoje”.
Organizador de Incontornável Marx [Ed. Unesp/Edufba, 2007], livro de
ensaios de estudiosos brasileiros e estrangeiros que defendem a
atualidade das idéias de Marx, o professor cita como evidência disso o
que o filósofo chamou de “queda tendencial da taxa média de lucro”.
Após cada crise sistêmica do capitalismo, previu o autor de O Capital,
as grandes empresas se reorganizariam a partir de fusões, para tentar
minimizar as perdas. Mas isso não é suficiente, acredita Nóvoa. “Como
muitos setores da economia real são deficitários, a tendência é que as
empresas quebrem. O capital saudável que sobra vai para o mercado
financeiro”. A concentração nas bolsas de valores seria, portanto,
reflexo dos lucros decrescentes na chamada economia real.
Passado – O modelo marxista, porém, é considerado
insuficiente pelo professor Paulo Roberto de Almeida. “Marx permanece
um autor e um filósofo do século 19, que refletiu sobre o capitalismo
do início da revolução industrial. As práticas bancárias e financeiras
da época são típicas de um sistema ainda em seu nascedouro”.
Para ele, pretender ver em Karl Marx um intérprete das crises e ciclos
econômicos do capitalismo contemporâneo é equivalente a pôr um
alquimista para trabalhar com a química moderna.
O tempo em que as políticas socialistas defendidas pelo alemão podiam
ser vistas como solução também já passou, diz o professor José
Crisóstomo de Souza.
“Marx continua atual. Mas perdeu força como alternativa, embora possa
ser bom para animar certos movimentos sociais“, ironiza. Espaço para
práticas socialistas conviverem com o capitalismo financeiro? ”Talvez
só na Bolívia“, brinca Crisóstomo.
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